sábado, 17 de dezembro de 2011

velho tema 1- velho tema 2

1
Só a leve esperança, em toda a vida,
Disfarça a pena de viver, mais nada;
Nem é mais a existência, resumida,
Que uma grande esperança malograda.

O eterno sonho da alma desterrada
Sonho que a traz ansiosa e embevecida,
É uma hora feliz, sempre adiada
E que não chega nunca em toda a vida.

Essa felicidade que supomos,
Árvore milagrosa que sonhamos
Toda arreada de dourados pomos,

Existe, sim: mas nós não a alcançamos
Porque está sempre apenas onde a pomos
E nunca a pomos onde nós estamos.
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2
Eu cantarei de amor tão fortemente
Com tal celeuma e com tamanhos brados
Que afinal teus ouvidos, dominados,
Hão de à força escutar quanto eu sustente.


Quero que meu amor se te apresente
- Não andrajoso e mendigando agrados,
Mas tal como é: risonho e sem cuidados,
Muito de altivo, um tanto de insolente.


Nem ele mais a desejar se atreve
Do que merece: eu te amo, e o meu desejo
Apenas cobra um bem que se me deve.


Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;
E vou de olhos enxutos e alma leve
À galharda conquista do teu beijo.
VICENTE DE CARVALHO

domingo, 6 de fevereiro de 2011

minhas 7 quedas

minha primeira queda
não abriu o pára quedas

daí passei feito uma
pedra pra minha segunda queda

da segunda à terceira queda
foi um pulo que é uma seda

nisso uma quinta queda
pega a quarta e arremeda

na sexta continuei caindo
agora com licença
mais um abismo vem vindo
P.Leminski, " Caprichos e Relaxos"

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

sete poemas portugueses

5.

prometi-me possuí-la muito embora
ela me redimisse ou me cegasse.
busquei-a na catástrofe da aurora,
e na fonte e no muro onde sua face,

entre a alucinação e a paz sonora
da água e do musgo, solitária nasce.
mas sempre que me acerco vai-se embora
como se me temesse ou me odiasse

assim persigo-a lúcido e demente.
se por detrás da tarde transparente
seus pés vislumbro, logo nos desvãos

das nuvens fogem, luminosos e ágeis!
vocabulário e corpo-deuses frágeis-
eu colho a ausência que me queima as mãos.

Ferreira Gullar  ( A luta corporal)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Que Desliza

" Onde seus olhos estão
as lupas desistem.
O túnel corre, interminável
pouso negro sem quebra
de estações.
Os passageiros nada adivinham.
Deixam correr
Não ficam negros
Deslizam na borracha
carinho discreto
pelo cansaço
que apenas se recosta
contra a transparente
escuridão."
                                   Ana C. Cesar.

sábado, 18 de setembro de 2010

"O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era
a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa.
Passou um homem depois e disse:essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás da casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem."
Manoel de Barros
O livro das ignorãças.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

"— Abraça tua loucura antes que seja tarde demais — ele disse, e seus olhos tinham a cor do mar. Tinham a cor exata de quem por muito tempo, todas as horas, todos os dias de muitos meses e anos, olhou detidamente o mar, acompanhando o vôo das gaivotas, interrompendo-se em rochedos, nivelando-se ao movimento incessante das ondas. Verdes de um verde movediço entre o denso do vidro e o suave da hortelã recém-plantada, líquidos como água móvel, interior de gruta, rasos de pedras claras. Visíveis, os olhos vivos do marinheiro me olhavam molhados pela chuva, vértice de um novo movimento para onde eu convergia inteiro.
Para olhá-lo, também eu precisava de certa loucura. Essa, que me indicava. A mesma a que me tenho negado em susto, atravessando cotidianos de monótonos côncavos deliberados, movendo-me pelos labirintos coloridos desses interiores sempre previstos, embora absurdos."
Caio F. Abreu.